Muita gente vem perguntando no Youtube (Inscreva-se aqui) e aqui no blog se um avião consegue decolar caso um motor pare de funcionar na decolagem.
Tem muita teoria por trás disso então trouxe exemplos do mundo real para tentar facilitar o entendimento de um assunto que é muito complexo (inclusive a performance de decolagem é questão certa de provas de avaliação num processo seletivo de qualquer empresa aérea no MUNDO dada a importância disso).
A pior coisa que pode ocorrer durante a decolagem de um avião, onde se usa potência máxima para levar toneladas e mais toneladas aos céus, é um motor falhar, correto? Porém o mais importante é na verdade em que momento da decolagem ele vai falhar. Se for logo no começo, assim que o piloto aplica potência fica fácil. Mas e quando a aeronave já estiver correndo na pista? Será que se eu decidir parar agora vai ter pista suficiente para frear o avião? A resposta tem 2 letras:
V1
(Vê-um ou Vee one em inglês) é chamada também de velocidade de decisão. É nela que é baseada a descisão do piloto de abortar ou continuar com a decolagem. Qualquer falha de motor até esta velocidade garante que a aeronave vai parar sobre a pista. Qualquer falha após, não, é mais seguro prosseguir com o voo, gerenciar a situação e retornar para o aeroporto.
Ela varia conforme o peso da aeronave e mais algumas variáveis. Hoje em dia existe um software disponível para os pilotos que faz esses cálculos na hora, antigamente era tudo no papel mesmo.
Basicamente o conceito de V1 se restringe a isso, ser um parâmetro para o piloto saber até quando ele pode rejeitar a decolagem.
Porém o problema não acaba apenas na análise de saber se o avião vai parar ou não. Apesar de um motor que falha representar uma perda de 50% da potência disponível, a perda de performance da aeronave chega a quase 80% em virtude do arrasto e da assimetria de potência. Mesmo após a decolagem existe um gabarito de segurança mínimo que deve ser cumprido. É aqui que entra a resposta da segunda pergunta do post.
Existem algumas combinações específicas que impedem a aeronave de decolar no seu peso máximo estrutural (seja porque a pista é muito curta ou que devido as condições daquele dia a aeronave não consegue respeitar o gabarito de segurança).
Imaginem que o voo 1234 vai decolar de uma pista X, a previsão é de lotação máxima e a temperatura externa está bem alta. Até aí tudo bem já que o ar condicionado do aeroporto está funcionando bem. Enquanto isso na Sala de Justiça coordenação da empresa uma movimentação já acontece pois o peso máximo de decolagem naquela condição não é o peso máximo estrutural da aeronave, então algumas bagagens e/ou passageiros não poderão embarcar. Trabalhando com números então (infelizmente não posso publicar foto do software que usamos):
O peso máximo estrutural de decolagem do ATR é de 23.000kg, em nenhuma hipótese esse peso pode ser ultrapassado. Inserimos qual vai ser o aeroporto, a pista e as condições meteorológicas atuais no programa e com esses dados já temos nosso peso máximo (MTOW – Maximum Takeoff Weight) para aquela condição. Vejam os exemplos abaixo para a pista 33 de Caxias do Sul.
Quando a temperatura está baixa e a pressão mais alta não há nenhuma limitação de peso.
Quando alteramos os valores para algo próximo do que ocorre em dias de verão (temperatura alta e pressão baixa) o nosso MTOW já não é mais o estrutural, e sim quase 1ton a menos. Além disso a V1 também é um pouco mais baixa, já que nessas condições o motor perde um pouco de potência e o avião precisa percorrer uma distância maior até chegar na velocidade de decolagem. Como a pista é relativamente curta (1600m), a V1 diminui para garantir que o avião pare sobre a pista em caso de uma rejeição.
Essa situação ocorreria em situações muito específicas na vida real já que com 10kts de vento de cauda é muito melhor decolar da pista oposta. Vejam que a V1 diminui drasticamente assim como o MTOW. O avião precisa de ar passando sobre a asa para gerar sustentação e o vento de cauda prejudica isso pois é necessário uma velocidade em relação ao solo MAIOR para gerar a mesma sustentação. Se precisa de uma maior velocidade de solo, precisa de mais distância para parar. Como não há muita pista sobrando, a velocidade de decisão diminui para manter tudo dentro dos limites.
Cada um desses novos MTOW GARANTE que o avião vai correr sobre a pista até depois da V1, um motor vai falhar, a tripulação continua a corrida de decolagem só com um motor, a aeronave atinge a velocidade de decolagem (Vr), consegue sair do chão e subir garantindo uma separação mínima regulamentar dos obstáculos existentes.
Lembrando que isso é muito superficial. Esse valor de V1 tem relação com inúmeros outros conceitos e restrições de decolagem, só abordei um deles que é o fator distância disponível de pista. Além dele há mais 7 que são considerados em toda decolagem.
E minhas malas, não vieram por quê?
Bom, se o voo estava com previsão de sair lotado é provável que alguma coisa vai ter que ficar no chão já que o peso máximo de decolagem seria extrapolado. Lembrando novamente que esse peso máximo é considerando que um motor VAI FALHAR durante a decolagem. Se for considerar os dois motores funcionando nunca haveria limitação de decolagem.
Por isso se algum dia isso acontecer com vocês, antes de xingar os coitados dos comissários, pilotos, agentes de solo, Deus e o cachorro da esquina, saibam que é zelando pela segurança de TODOS que suas malas ficaram no chão 😉
E os voos mais longos decolando de Congonhas? É perigoso?
Como acabaram de ver, não há diferença NENHUMA em se fazer voos mais longos a partir do aeroporto de Congonhas. O cálculo de decolagem é exatamente o mesmo e as restrições são exatamente as mesmas, seja para a ponte aérea ou para Salvador.
Qualquer dúvida, deixem seus comentários!